OPINIÃO

A hipocrisia bolsonarista: Gentili está errado, mas falso moralismo é o tom dessa conversa

Foto: Reprodução

18/03/2022 – 07:17:19

Luiz Felipe

As redes sociais como Facebook e Twitter pegaram fogo essa semana com o “requentar” da polêmica envolvendo o filme do “comediante” Danilo Gentili, em uma cena protagonizada pelo ator Fábio Porchat. Por se tratar de uma obra de Danilo Gentili, eu ainda não havia assistido ao filme, confesso que a postura desse comediante me causa enjoo e ânsia de vômito, é alguém que usa a comédia para destilar seu preconceito ao fazer piadas sobre pessoas gordas e se acha o gás da coca diminuindo seus colegas de trabalho como faz em seu programa diário no SBT.

Instigado pela discussão sobre apologia ao abuso sexual infantil, resolvi assistir ao filme, que inicialmente até faz uma abordagem muito verdadeira do nosso sistema fascista de ensino, que é nada criativo ou convidativo ao avaliar nossas crianças, basta lembrar de quando nós fomos alunos e de como nós – quem é da licenciatura – foi formado para ser professor. Nosso sistema infelizmente não agrega em nada, é um verdadeiro paço ditatorial, com prova escrita, regras de um acampamento de verão fascista e as vítimas são os estudantes e os próprios professores, mas esse não é o tema desta coluna.

A cena polêmica está próxima dos 20 minutos de filme, quando o personagem interpretado pelo ator Fábio Porchat pergunta às duas crianças que estão em sua sala se – após uma oferta de ajuda – os dois aceitariam masturba-lo. A cena prossegue na discussão entre os dois garotos enquanto o personagem abre o zíper da calça e pega na mão de um dos garotos que está distraído com a discussão e o corte seguinte dá a entender que o abuso ocorreu. Aqui são necessários alguns apontamentos muito importantes para que possamos entender o tamanho deste problema, que não foi inventado por Danilo Gentili ao escrever o roteiro do filme, mas que segue o padrão e a cultura do estupro e do assédio no Brasil.

O primeiro ponto é que muitas pessoas estão argumentando que por se tratar apenas de uma obra de ficção cinematográfica, a liberdade poética existe e deve ser preservada, qualquer ato para além deste é censura, ponto. Segundo ponto: o filme possui uma classificação indicativa de 14 anos, que obrigatoriamente passa pela Secretaria Nacional de Justiça, um órgão do Ministério da Justiça, que desde os anos 90 é responsável pela classificação indicativa nos programas de tv, rádio, filmes, peças de teatro, peças publicitárias etc.  Portanto, causa estranheza o governo cujo ministério liberou a classificação fingir surpresa com o filme e a cena em si.

O que me causa perplexidade, por outro lado, é a cara de pau do governo ao tentar usar o problema emplacado neste filme como se isso fosse uma preocupação do governo Bolsonaro, justamente quando o Presidente da República Federativa do Brasil tem nas costas uma acusação de incitação ao estupro quando disse abertamente, em frente às câmeras, para a deputada Maria do Rosário (PT), que ele não a estupraria porque ela não merecia, como se alguém fosse merecedor ou merecedora deste crime hediondo. Mas voltando ao fato, o governo decidiu usar a ação como cortina de fumaça para desviar a atenção da sua culpa a respeito do aumento dos combustíveis, da alta inflação, do desemprego, da instabilidade na SELIC e da economia do país como um todo. O podre governo Bolsonaro não está nem aí para abuso sexual infantil, não é seu interesse combater esse tipo de crime, é interessante apenas tirar os holofotes da família de milicianos.

Sobre o filme em si, é uma obra de péssimo gosto, com produção razoável e com uma cena que para mim (que não entendo nada do direito) é uma clara apologia ao abuso sexual infantil, principalmente porque trata a questão de um ponto de vista humorístico. E qual é o problema? Pois bem, podemos começar pela própria apologia e incitação ao crime, práticas tipificadas como “crimes contra a paz pública” pelos artigos 286 e 287 do Código Penal Brasileiro de 1940. O que vou dizer a seguir é o palpite de alguém totalmente leigo no assunto, uma vez que não sou bacharel em direito, advogado ou um juiz de direito. A cena pode se enquadrar perfeitamente em apologia ao crime de abuso sexual, pois é uma cena romantizada na qual o abuso é consumado enquanto duas crianças discutem inocentemente.

Respondida à questão anterior, há que se destacar outra questão: a experiência traumática que será vivenciada pela vítima do abuso sexual. Muitos humoristas defenderam Danilo Gentili argumentando que tratar do abuso sexual de forma humorística, com piadas, foi a forma que muitos comediantes que foram vítimas dessa prática criminosa encontraram para se libertar do trauma, encarar a questão (psicólogo e psiquiatra para quê, né?). A grande questão é: o humor deve ter um limite? Marcelo Adnet – em uma participação no Altas Horas – disse que o limite do humor é o seu próprio limite pessoal e a lei. Não conheço o passado de Adnet, não sei se há algo que vá contra sua declaração, mas concordo com o argumento. E a pergunta seguinte, que um amigo me fez – inclusive, “mas e os filmes que abordam a violência, o uso de drogas, fazem apologia também?” De certa forma sim, porque a partir da arte tudo é possível, tudo pode ser copiado da realidade ou transformado em realidade a partir da arte, é a tolerância ilimitada posta em discussão mais uma vez: até que ponto pode ser permitido esse tipo de prática no cinema ou na tv?

É possível separar o ator da arte? A aclamada série da Netflix, House of Cards, trouxe essa discussão ao público também. Seu protagonista – Kevin Spacey – que interpretava o astuto e sagaz político Francis J. Underwood, deputado e depois presidente dos Estados Unidos – foi acusado por um ator de agressão sexual. A produção da série afastou o ator e (contém spoiler) deu um jeitinho de mata-lo para a sexta temporada, tanto que o primeiro episódio mostra sua esposa, Claire Underwood, escolhendo as fotos do funeral que serão liberadas para a imprensa. Recentemente, Eric Clapton, o lendário guitarrista e cantor, foi top1 no Twitter ao reafirmar sua postura antivacina, alegando – inclusive – que não faria shows onde a população estivesse sendo obrigada a apresentar passaporte sanitário para a comprovação da imunização. Victor Chaves, violonista, cantor, compositor, que formava dupla sertaneja com o irmão Leo Chaves, foi processado por violência contra a mulher ao ser acusado de agredir a então esposa – grávida – com chutes e socos na porta do elevador. Victor chegou a fazer piadas com a agressão em sua conta no Instagram; mais tarde se defendeu dizendo que estava usando o sarcasmo para exemplificar a quão ridícula era a acusação e que ele jamais iria ferir a mãe de sua filha. O caso foi arquivado tempos depois, quando a ex-esposa do cantor e que depois reatou o relacionamento, retirou as acusações sob suspeita de coação por parte da irmã e mãe do cantor, que moram no mesmo prédio que os dois em Belo Horizonte, em Minas Gerais.

Todos esses acontecimentos fazem a mesma pergunta: é possível separar a arte do artista? O que ele é no palco ou diante das câmeras não tem ligação com quem ele ou ela é em sua “vida real”? Honestamente, essa é uma pergunta até simples na minha opinião, não dá para concordar em continuar dando dinheiro – ao comprar discos, por exemplo – para alguém que agride a mulher.  Diversas são as questões que serão levantadas nestes casos quando há o envolvimento de pessoas públicas, sobre a responsabilidade que cada qual tem com seu público, com seu fã, com pessoas que seguem seus passos diariamente e isso também nos chama a atenção para outro detalhe: até que ponto estamos vivendo nossas vidas influenciados pela cultura de massa, para aquela que é apenas para um produto para milhões de pessoas? Não tem resposta simples para essa questão.

No que tange ao filme de Danilo Gentili, é uma questão que ainda deveria ser de competência dos tribunais e não do governo. O governo não pode e nem deve censurar por conta própria – ainda que algo de mal gosto e possivelmente criminoso – qualquer tipo de expressão artística. Concordo que é uma postura muito infeliz do comediante, mas cabe à Justiça definir o que deve ser feito, não ao governo Bolsonaro. O falso moralismo do governo Bolsonaro é o que há de pior nesse país, pois como disse lá no começo, não se trata do interesse no combate ao crime de abuso sexual, mas sim em lançar uma cortina de fumaça e também para atingir adversários políticos que outrora receberam o apoio do comediante, como o ex-ministro Sérgio Moro, que pulou do barco que está afundando. 

Se todas as práticas criminosas presentes na tv, no rádio, na internet ou em qualquer outro lugar fossem tratadas da mesma forma, não haveria problema algum. O centro de toda essa questão ainda é e será a hipocrisia, não apenas do governo, mas de toda a sociedade. Será que apologia ao abuso sexual só começou a existir com o filme lançado em 2017? Marco Feliciano e outros bolsonaristas fieis eram grandes fãs do humorista Danilo Gentili, que sempre teve um “humor” politicamente incorreto, com bullying, racismo, xenofobia, homofobia e outros tantos crimes. Fábio Porchat, por outro lado, passou a ser o queridinho da TV Globo pela postura de sempre criticar o governo e fazer piada com tudo que envolvia a direita. Os esquetes do Porta dos Fundos, do qual o ator é também roteirista e diretor, sempre abordaram temas polêmicos e até produziram especiais de Natal para a Netflix abordando temas como a última ceia e um Jesus homossexual. Óbvio que a direita ultraconservadora não gostou nada e acionou a Justiça para censurar os especiais do Porta dos Fundos e não deu em nada.

Mais curioso ainda, é que até outro dia Danilo Gentili se disfarçava de isentão, mas era um bolsonarista fiel e uma cópia fracassada de Jimmy Fallon, ator e comediante que possui um talkshow de sucesso nos Estados Unidos; até mesmo o cabelo de Fallon foi copiado por Gentili. Pimenta no olho dos outros é refresco, não é? Seja como for (e essa é uma coluna de opinião, não significa verdade absoluta), achei a cena totalmente desnecessária e pesada, completamente pesada. Não se faz piada com crimes hediondos como o abuso sexual, o estupro. Dar publicidade para este tipo de crime no cinema ou na novela, assim como o uso indiscriminado do álcool, do tabaco e de outras drogas mais pesadas, tem uma parcela significativa na formação social das pessoas, queiram vocês ou não. Foi um humor escolar sem limites no qual perderam a mão.


por:

Luiz Felipe de Lima

• Historiador •

Formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro;

Professor de História e Sociologia;

Pesquisador.

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