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A síndrome da saudade do que nunca existiu

Foto: Pixabay

16/01/2023 – 08:49:13

Alexsander Menezes

É recorrente que em tempos que antecedem avanços sociais ressurjam textos que com poucas variações dizem coisa como:

“(…) nessa época não tínhamos Bolsa Família. Tínhamos uniformes e material escolar comprados pelos nossos pais com muito suor, não tínhamos celular. As pesquisas de escola eram feitas em bibliotecas da escola. Tinha dever de casa pra fazer, a educação física era de verdade, tínhamos carteirinha. Fui e sou muito feliz.”

Muitas vezes, desavisado tomei como verdadeiras as falsas lembranças incutidas maldosamente em nosso inconsciente.

Na verdade, fui sim um privilegiado. Estudei em uma das poucas escolas públicas que existiam, e não sei se por alienação ou inocência não imaginava que boa parte das crianças não tinham acesso a qualquer escola, que
boa parte dos meus amigos não tinham material escolar.

Que muitas vezes a escola organizava “caixinhas” para fornecer o mínimo para que algumas crianças conseguissem ir a aula.

Naqueles “bons tempos” uniforme era um luxo, reaproveitado ainda que roto, era repassado de criança para criança até poir.

Ainda era comum ver colegas com sequelas da pólio, “barriga d’água”, dentes podres, alguns mal escondiam atrofias decorrentes da nutrição precária.

Em nossa inocência apelidar colegas pela cor da pele, compleição física, era engraçado e muitas vezes incentivados por pais, educadores e sociedade em geral.

Mal sabíamos que isso poderia causar dor às nossas vítimas involuntárias sistematicamente desencorajadas a reagir.

Como resultado foi a nossa geração quem organizou, invadiu, depredou e violentou nossas instituições em nome dessa falta de noção do que nossas palavras e ações causam ao mundo, às pessoas, à natureza e à sociedade.

Como disse certa vez Renato Russo “a saudade imensa de tudo que ainda não vi” é um vício; mas ao contrário da canção não há cura, e pior: Já não “somos tão jovens”.

Em verdade somos uma geração falha, e nossas falhas se materializaram no infame 08/01.

A idealização de um mundo de desigualdade, somada a condescendência com as agressões e o culto ao conceito utópico de meritocracia foram o combustível da barbárie.

E sempre que a barbárie é exposta, esses textos ressurgem, retirados da latrina e reciclados como refeição quentinha a ser servida aos nostálgicos de valores que não viveram na alma.

Que ao menos dessa vez saibamos estar diante da armadilha e dela desviemos, e finalmente assumamos nosso papel com as gerações que hão de nos suceder.

Foto: Divulgação/Assessoria

Administrador pela Universidade Católica de Brasília e especialista em Gestão de Pessoas e Liderança pela Universidade Cândido Mendes do RJ. Empregado dos Correios há 20 anos, atualmente é membro da Comissão de Relações Internacionais da Federação Nacional dos Trabalhadores dos Correios.