Imagem: Reprodução/Netflix
24/06/2022 – 07:46:09
Luiz Felipe
Imagine você que uma vez ao ano tivesse a liberdade para cometer qualquer tipo de crime sem ser preso, julgado e condenado por isso, o que você faria? Iria acertar as contas com aquela pessoa que te irritou ou humilhou em público? Bateria no cara que te fechou no trânsito ou que olhou para a sua esposa/esposo? Mataria um estranho apenas para aliviar o estresse? Bancaria o justiceiro e iria atrás de criminosos? Pois bem, essas foram situações que os roteiristas e criadores da franquia “The Purgue” (uma noite de crime – título em português) imaginaram ao criar a série de filmes. Lançado em 2013, o filme se passa em um futuro não muito distante (algo próximo de 2022 e 2023) e tem como pano de fundo a chamada noite da purificação, uma noite ao ano em que as pessoas têm aval das autoridades para cometer todo tipo de crime que desejarem. A justificativa das autoridades é de que o ser humano é um ser violento por natureza e tem o direito de extravasar os seus instintos assassinos uma vez ao ano. A lógica da noite de crimes baseia-se no fato de que por um dia todos libertariam seu instinto animal e no dia seguinte voltariam à normalidade; uma espécie de catarse coletiva.
Os cinco filmes da franquia – embora abordem temáticas diversas – expõem o duro axioma da desigualdade social. Nessa sociedade de distopia, as pessoas que não desejam participar da noite de crime se trancam em suas casas e ficam seguras durante toda a noite. Com o desenrolar da noite de crimes, diversas empresas de segurança privada começam a vender os melhores sistemas de segurança e a cidade acaba por se tornar uma fortaleza de condomínios ultraprotegidos, enquanto que os mais pobres não possuem as condições financeiras para adquirir o sistema de segurança e por uma lógica maquiavélica, esses acabam se tornando – por excelência – as vítimas da noite de crimes.
A equipe de produção do filme tomou o máximo de cuidado para aproximar a estória do filme com críticas à nossa sociedade que é futurista no enredo do filme. Há tempos nós vivemos como animais adestrados pelas sanções do Estado, por sanções legais e morais, onde o ato da matança por matança é recheado de uma hipocrisia não só muito bem aceita como incentivada, basta saber quem será o matador e o morto. A nossa tara por violência revela o quanto somos uma sociedade doente, que abomina o homicídio ao mesmo tempo em que aplaude o Estado por chancelar assassinatos por meio da força policial.
Em 2019, uma psicóloga britânica chocou a sociedade ocidental quando disse que nossa mente sente prazer com o sofrimento alheio e a revolta com as palavras da profissional deixaram claro – assim como dois mais dois é igual a quatro – que ela estava certa em seus estudos. Para Julia Shaw, matar é uma condição essencial para a existência humana e por mais chocante que possa parecer, é a mais pura verdade, basta deixarmos a hipocrisia e a culpa cristã de lado para entendermos tudo isso.
E embora matar seja da natureza humana, é aí que nossa hipocrisia aflora. Pois consideramos alguns assassinatos como “bons” e justos, enquanto outros são condenados e taxados de abomináveis. Há uma linha muito tênue e hipócrita entre condenar a morte de uma vítima de latrocínio, por exemplo, e depois aplaudir a morte do praticante do latrocínio. Nós estamos treinados para agir com sadismo e crueldade, mas não é isso que me preocupa, é o fato da normalização dessa barbárie e, chegamos ao ponto absurdo, de não mais problematizar esse tipo de questão ou pior, achar problema no fato de alguém problematizar o assassinato corriqueiro da nossa sociedade.
A criminalização da pobreza tem sido um dos maiores problemas que o Brasil enfrenta atualmente, pois a escolha social de quem será malhado no tribunal social é muito clara, tão clara quanto a cor do pano passado para criminosos brancos, por exemplo. A tabela de cores das manchetes de jornais já aprendeu que adolescentes brancos presos com drogas são jovens, enquanto que negros são traficantes por excelência. É assim que a imprensa apresenta os fatos e sabe por quê? Porque vende, porque não aceitamos enquanto sociedade que o menino branco de olhos azuis e que estuda na melhor escola particular da cidade, que frequenta o clube social, que lê bons livros, escuta boas músicas e mora no apartamento da zona sul é o viciadinho que sustenta o tráfico e descola um dinheiro com o papai para comprar um mero baseadinho. É esse marginal que faz a criança negra morrer no confronto entre o Estado e os seus oponentes; é esse mesmo tráfico de drogas que acaba por convencer os jovens de que a vida à margem da lei compensa, pois enquanto o Estado se ausenta de suas obrigações, é o tráfico que faz as vezes do Poder Público e fornece segurança, serviços de qualidade, alimentação e escola. O tráfico é mais organizado que o próprio Estado e acaba protegendo os seus.
Isso não significa que o tráfico deve ser incentivado, muito pelo contrário. Mas demonstra que enquanto estivermos encarando o problema com drogas como uma questão de segurança e não como pauta do campo da saúde, os corpos amontoados nas periferias executados pelo próprio tráfico ou pela polícia continuarão amontoados cada vez mais. Enquanto mantivermos a falha da distribuição de renda, não nos veremos livres do peso morto em cima da sociedade que nos transforma em um bando de animais prontos para exterminarmos uns aos outros. Desde o fim da ditadura militar esse país não vê tanto sangue de inocentes nas ruas, nós temos uma guerra urbana nas nossas capitais e um esfacelamento quase que programado das populações mais pobres, estamos encarando um novo processo de eugenia que foi desencadeado por um discurso odioso contra as minorias e que não abre o menor espaço para a existência do diferente. Estamos abrindo os jornais todas as manhãs e engolindo junto com pão e ovo a barbárie destemida e banalizada que nos cerca todos os dias; neutralizamos o choque e a repulsa que deveríamos ter diante de tudo isso, mas estamos tendo que nos digladiar em redes sociais com pessoas que defendem a permanência de uma gravidez fruto de um estupro onde a vítima é uma criança de 11 anos.
Não sei vocês, mas estou para pegar carona com Raul Seixas em todo esse inferno que chamamos de vida em sociedade. Pare o mundo que eu quero descer.
• Historiador •
Formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro;
Professor de História e Sociologia;
Pesquisador.
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