Foto: Reprodução/TV Globo/ AP Photo/Andre Borges
07/01/2022 – 11:13:00
Luiz Felipe
A arte imita a vida ou a vida imita a arte? Para Aristóteles, a arte imita a vida, pois é ela [a arte] que pode vencer os obstáculos impostos; porque enquanto o homem político deve agir com prudência e cautela, ao artista sobra a habilidade e a licença poética para agir livremente. Mas para Oscar Wilde, por exemplo, é a vida que imita a arte. Adorno pode nos ajudar a compreender essa questão com a cultura de massa, pois o melhor vendedor de um produto é o artista, a celebridade oriunda da cultura de massa.
Chega um momento em que a ficção parece transbordar a tela da televisão ou do cinema e aí é difícil separar a ficção do mundo real. Discurso cheio de palavras difíceis, neologismos baratos, promessas furadas de campanha, slogans marcantes e manipulação do eleitorado. Tudo isso parece retrato do Brasil atual e é, mas é também a descrição imperfeita de uma personagem marcante como o eterno político corrupto que fez escola por meio da ficção e criou o realismo mágico na política brasileira.
Para os que nasceram fora da época de exibição da novela, assim como eu – e que nunca tiveram a oportunidade de assistir, aqui vai um resumão. Lá pelos tempos idos de 1970, a TV Globo passou a exibir uma telenovela de grande sucesso em todo o país: “O Bem-Amado”, escrita por Dias Gomes. A trama se passa na cidade fictícia de Sucupira, no estado da Bahia, que tem Odorico Paraguaçu, um político demagogo e corrupto concorrendo para o cargo de prefeito da pequena cidade. Utilizando-se de discursos inflamados e verborrágicos, cheios de neologismos, Odorico era um político analfabeto, grosseiro e era nisso que residia a comédia; em todos os seus discursos, era comum que inflamasse a população de Sucupira com palavras e expressões quase impossíveis de entender, porém ditas em potente vozerão dado por Paulo Gracindo, que interpretou habilmente o político. “Construimento”, “desaforista” e “desapetrechado de inteligência”, eram palavras e expressões que Odorico usava para se dirigir aos seus cupinchas e ao próprio povo.
Baseado na necessidade do povo, movido pela política do pão e circo, Odorico explorou a ausência de um cemitério na cidade de Sucupira, dizia que era lastimável alguém morrer e ser enterrado em outra cidade que não a sua de nascença. No primeiro capítulo da novela, ao fazer o discurso prometendo o cemitério, chamou a atenção para um homem morto que estava sendo carregado pela praça para o cemitério da cidade vizinha. O slogan de campanha de Odorico era: “vote em um homem sério e ganhe um cemitério”. E Odorico foi eleito e a meta de sua administração era a inauguração do cemitério, que tinha a oposição ferrenha do jornalista Neco Pedreira, do jornal A Trombeta, do dentista Lulu Gouveia e da família Medrado, que comandava a polícia local.
O tempo passa e Odorico começa a enfrentar problemas para inaugurar o cemitério, uma vez que ninguém morre na cidade. Maquiavelicamente, Odorico passa a planejar a morte de diversas pessoas para que possa ocorrer a inauguração de sua principal obra. A esperança do político ressurge no meio da trama com uma epidemia de Tifo que pode se espalhar por Sucupira, mas o prefeito genocida planeja boicotar a vacinação da população para ver se consegue apressar a morte de algum cidadão para ser enterrado no novo cemitério, mas ninguém morre. Na história, o médico Leão é quem faz o todo o trabalho de vacinar a população, impedindo o alastramento da doença e a morte dos moradores de Sucupira. Ao ser questionado por seu secretário, Dirceu Borboleta, Paraguaçu diz que não deixará o adversário ser herói e diz com todas as letras: “se há vaga de herói, é minha”. Mas, ironicamente, o prefeito acaba morrendo e é ele próprio quem acaba por “inaugurar” o cemitério sendo enterrado nele.
A teledramaturgia sempre serviu ao país como uma forma de expressar o real dentro da ficção, especialmente, copiando situações corriqueiras e que no fim se salvam com um “qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência” – e sabemos que não é. O Bem-Amado sofreu com a censura da ditadura, principalmente porque seu autor tinha um posicionamento de esquerda; mas basta que possamos observar seriados de televisão estadunidense como House Of Cards, uma leitura quase fiel da política brasileira e das manobras para a derrubada da ex-presidente Dilma Rousseff.
Seja como for, a verdade é que agora temos um Odorico Paraguaçu no Planalto. Bolsonaro – que tem idade para isso – parece ter copiado capítulo a capítulo da trama de Odorico Paraguaçu. Ironicamente, em um determinado capítulo da novela, Paraguaçu perde a paciência com seu secretário, Dirceu Borboleta, que expressa a preocupação com a dificuldade do médico em vacinar toda a população e que a epidemia de Tifo se espalhe pela cidade. Odorico, esbravejando, pergunta ao secretário: “E daí, seu Dirceu?”.
Quando Odorico percebe que perdeu o apoio do povo e passa a ser um político odiado por todos os seus “concidadões de Sucupira” [como ele se dirigia ao povo], ele passa a pensar em uma estratégia para que o povo fique ao seu lado novamente e percebe que um atentado poderia o fazer cair nas graças da população novamente. A trama se encerra com Odorico morto, mas vale lembrar que em diversos momentos da história política brasileira, candidatos ou políticos já no cargo simularam atentados ou pelo menos deixaram sob suspeita o atentado ocorrido. Próximo do suicídio de Getúlio Vargas, Carlos Lacerda – o jornalista e principal opositor de Vargas – é supostamente vítima de uma emboscada e acaba levando um tiro no pé, que é rapidamente engessado (oi?). Essa cena cômica é possível de se assistir em “Getúlio”, estrelado brilhantemente por Tony Ramos e disponível no streaming da Netflix.
Para polemizar um pouco, é óbvio que não podemos deixar a facada de Jair Bolsonaro, o Odorico da modernidade, de fora dessa análise – ocorrida durante a campanha eleitoral de 2018. Para muitos, a facada não passou de uma conversa para boi dormir, uma estratégia marqueteira para alçar o então candidato Odorico, digo, Bolsonaro, ao Planalto. Aos bolsoafetivos, nem percam o tempo de me xingar, não dou a mínima para vocês.
Verídica ou não, a facada salvou Bolsonaro, que não precisou abrir a boca em debates para levar o voto da maioria da população. Ele, assim como Odorico, dizia-se um homem de bem, temente a Deus e que pensava somente no bem de sua gente. Assim como Odorico, o nepotismo corre solto no governo Bolsonaro, 13 parentes seus foram nomeados para cargos importantes no governo. E assim como Odorico Paraguaçu, Bolsonaro também esquivou-se com um “se não confiamos nos parentes, vamos confiar em quem?”.
Seria cômico se não fosse trágico, meus amigos, mas Jair Bolsonaro é uma perfeita cópia da ficção Paraguaçu, transformou o Brasil em uma Sucupira e transformou em realidade o medo de Leão, o médico da novela, que temia o dia que Odorico fosse presidente de uma grande potência como o Brasil e foi justamente o que aconteceu. Bolsonaro incorporou Odorico e virou presidente. Para que a trama seja completa, falta apenas o relacionamento com as irmãs Cajazeiras, pois o cemitério de Bolsonaro já está feito e inaugurado: mais de 600 mil vítimas. E, diferente de Odorico, não quero que Bolsonaro morra para inaugurar um cemitério, quero o presidente bem vivo, mas não por compaixão, mas para que responda por seus crimes e vá para a cadeia. Compaixão eu tenho de cada pessoa que perdeu alguém para a Covid-19. No mais, estou indo embora.
• Historiador •
Formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro;
Professor de História e Sociologia;
Pesquisador.
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