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Consciência do quê? E para quem?

Foto: Wikimedia Commons

22/11/2022 – 08:09:01

André Luís A. Silva

As primeiras celebrações relacionadas ao dia 20 de novembro no Brasil foram realizadas por grupos e movimentos sociais contrários ao racismo, ainda na década de 1970, mas a data só se tornou uma celebração oficial a partir da Lei nº. 12.519, de 10 de novembro de 2011, quando foi instituído o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, que passou a ser celebrado anualmente no dia 20 de novembro. A data escolhida é atribuída ao dia da morte de Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes da resistência negra durante a escravidão.

Zumbi (1655 – 1695) foi o último líder do Quilombo dos Palmares, o maior quilombo que existiu durante a escravidão na América Latina. Localizado na região serrana da Capitania de Pernambuco, hoje, atual Estado de Alagoas, o quilombo foi criado ainda no final do século XVI, por escravos que haviam resistido à escravidão e fugido das fazendas da região. Em seu auge, o Quilombo dos Palmares chegou a possuir uma população entre 20 mil e 30 mil habitantes, até que fosse destruído por expedições militares portuguesas e holandesas, em 1694 e 1695. 

De acordo com o etnólogo Edison Carneiro, o tributo à Zumbi é pelo seu espírito de liderança, resistência e liberdade, logo, a instituição do Dia da Consciência Negra visa manifestar a importância do negro e da cultura africana na constituição da identidade nacional, bem como, a promoção de debates sobre o combate ao racismo e discriminação, mais igualdade social, inclusão e valorização da cultura afro-brasileira. Posto isto, a data também é um convite para conhecermos nossas raízes, cultura e história, uma vez que ela nos permite refletir sobre a existência de um grande abismo social, econômico, político e cultural entre negros e brancos no Brasil. E, para isso, a consciência é o primeiro passo para mudarmos o cenário atual.

Segundo o historiador Felipe Alencastro, a escravidão de negros no Brasil começou por volta da segunda metade do século XVI, devido ao desenvolvimento da colonização portuguesa que demandava cada vez mais mão de obra, principalmente, nas lavouras e nos engenhos de açúcar. Deste modo, iniciou-se o tráfico de pessoas africanas para serem escravizadas no Brasil, um negócio que acabou se tornando extremamente lucrativo para os traficantes de escravos, bem como para a coroa portuguesa. Foi assim que no decorrer das próximas décadas a escravidão negra acabou substituindo a escravidão dos povos indígenas, uma marca do início da colonização. Estima-se que, desde então, cerca de 5 milhões de africanos foram traficados para o Brasil e forçados ao trabalho escravo.

Usurpados de sua pátria e família, os escravos que desembarcavam no Brasil tinham um choque de cultura, de privação de liberdade e violência. Logo depois, eram destituídos de humanidade e passavam a ser tratados como animais de carga nas lavouras de tabaco e algodão, bem como, nos engenhos de açúcar. Ao longo dos séculos, os negros também foram escravizados nas vilas e cidades executando trabalhos domésticos, em atividades de mineração, criação de gado e até mesmo em conflitos armados, o maior exemplo é a Guerra do Paraguai (1864 – 1870), na qual, aproximadamente, 20 mil escravos lutaram como soldados no Exército Brasileiro, na promessa de que se voltassem vivos ganhariam a liberdade. A mão de obra escrava foi um potente motor da economia colonial e imperial brasileira, ao mesmo tempo em que moldava as condições e relações políticas, sociais, econômicas e culturais do nosso país.

O cotidiano dos escravos era marcado pela exaustão do trabalho forçado, pela extrema violência e humilhação. Viviam em ambiente insalubre, privados de higiene e expostos a doenças. Dormiam em senzalas, vestiam-se com trapos, alimentavam-se com restos de comida e sofriam castigos físicos, psicológicos e sexuais de forma constante. Deste modo, a expectativa de vida de um escravo era extremamente baixa. Ainda assim, houve muita resistência e, talvez, o maior símbolo dela seja o Quilombo dos Palmares. Mas é importante ressaltar que todo modo de resistir foi importante na luta para a abolição da escravidão no Brasil. A desobediência, a sabotagem das ferramentas de trabalho, a organização de motins, a fuga para quilombos, o suicídio, as agressões e assassinatos de senhores de escravo eram frequentes e fizeram parte das inúmeras formas de resistência ao regime de escravidão.

O processo de abolição da escravidão no Brasil foi longo, lento e gradual. Só ocorreu em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel, filha de D. Pedro II. De fato, a conquista da liberdade jurídica não garantiu aos ex-escravizados o direito de serem cidadãos, uma vez que não houve políticas compensatórias ou algum tipo de indenização para os negros que, durante anos, haviam sido escravizados. Também, não houve nenhuma alteração no regime de propriedade de terras para transformar o ex-escravo em um pequeno latifundiário. Muito pelo contrário, nenhum negro foi indenizado por anos prestados de trabalho forçado, castigos e humilhação. O povo negro, agora livre de suas correntes, não teve acesso à saúde, à educação, à segurança, à moradia e à qualificação profissional. Foram abandonados pelo Estado sem possuírem as condições mínimas de recomeçarem suas vidas. Ao mesmo tempo, o governo brasileiro incentivava a chegada de imigrantes europeus no país, no intuito de ocupar os postos de trabalho e branquear a cor da população.

Gilberto Freyre, sociólogo brasileiro, chega a mencionar em sua obra Casa-Grande & Senzala (1933), a existência de uma democracia racial no Brasil, pelo fato de que haveria certa harmonia na convivência entre raças (brancos, negros e indígenas), o que, de fato, é um mito, nunca existiu. Mesmo após a abolição, os negros continuaram sendo tratados como seres selvagens, inferiores e desumanos. Ser negro era pertencer a uma sub-raça que estragava a imagem e o desenvolvimento do país. O racismo, o autoritarismo e a violência continuavam explícitos no cotidiano brasileiro, contribuindo para silenciar e inviabilizar qualquer emergência dos traços da cultura negra, da garantia do mínimo de dignidade e o direito à cidadania. Assim, o Estado e a sociedade foram, aos poucos, jogando os negros para a marginalidade. Para eles, sobraram os piores trabalhos, o analfabetismo, as piores moradias e as condições de vida mais precárias.

Mesmo passados 134 anos da abolição da escravidão no Brasil, a desigualdade racial é um traço estrutural do nosso país. De acordo com a segunda edição do estudo Desigualdades por Cor ou Raça, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), tendo o ano de 2021 como base, a renda média domiciliar per capita de um cidadão branco foi de R$: 1.866 por mês, enquanto que a de um negro foi de R$: 965. O levantamento também mostra que negros e pardos são 74,8% da população com menor renda no Brasil, dado que os coloca na parcela mais pobre da sociedade. A falta de trabalho também é desigual. Entre os brancos 11,3%, pardos 16,2% e negros 16,5%. Outro ponto importante deste estudo é que, mesmo sendo a maioria no mercado de trabalho, negros e pardos ocupam somente 29,5% dos cargos de chefia ou gerência, enquanto que brancos somam 69%.

No que diz respeito ao acesso à educação, 15,2% das crianças e jovens negros estavam fora da escola no ano de 2021, pardos 13,5% e brancos 6,8%. Quando o estudo aborda a questão das moradias, a precariedade também recai sobre negros e pardos. De acordo com os dados apurados, 27,8% dos brancos não têm acesso a saneamento básico em suas residências, número que sobe para 36% para negros e 45,6% entre os pardos. Sobre abastecimento de água e coleta de lixo, os dados são muito semelhantes. O relatório do IBGE também traz dados sobre segurança, em específico, sobre quem são as vítimas de homicídios no Brasil. Os brancos são 11,5 das mortes para cada 100 mil habitantes. Taxa que sobe para 21,9 para os negros e 34,1 para os pardos. Estes números mostram que, negros e pardos somados, foram a maioria das vítimas de homicídios no último ano no Brasil.

Com efeito, a importância deste relatório é pelo fato de conseguir mapear as principais desigualdades (renda, educação, moradia e segurança), quando observado cor ou raça no Brasil. Segundo o próprio autor do levantamento, o IBGE, os números apurados em 2021 retratam um sensível retrocesso, isto é, as desigualdades raciais aumentaram, quando estes mesmos dados são comparados com a primeira edição do estudo realizado em 2019.

Contudo, somente mapear onde estão as desigualdades raciais pouco resolve este problema, mas, é o primeiro passo para que possamos analisar os caminhos histórico-culturais que nos trouxeram para a atual situação, bem como, entender porque as desigualdades ainda permanecem na nossa sociedade. Logo, aí está a importância do Dia da Consciência Negra. Também, a partir dos dados levantados, é preciso que a sociedade, em conluio com seus governantes, pensem e executem políticas públicas e ações sociais concretas para revertermos o mais rápido possível o brutal cenário de desigualdades no Brasil e, assim, tornar a nossa sociedade mais livre, plural e democrática.

Os séculos de escravidão no Brasil ainda são uma enorme ferida que talvez nunca cicatrize, tendo em vista que foi ela quem produziu efeitos perversos e traumas irreversíveis no cotidiano dos negros escravizados. Além disso, suas heranças seguem vivas na injúria racial, no racismo, na miséria econômica, no autoritarismo, na tortura e na violência que tem como alvo principal a pele negra. Por outro lado, estes são os principais motivos pelo qual, a sociedade como um todo, deve enfatizar sua luta pelo fim do racismo e pela garantia de igualdade e inclusão social.

André Luís A. Silva

Historiador, Professor e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná