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O Golpe Civil-Militar de 1964 nas páginas da nossa história

Foto: Wikimedia Commons

01/04/2024 – 15:21:08

André Luís A. Silva

João Goulart (PTB), popularmente conhecido como Jango, havia sido eleito vice-presidente na chapa oposta que elegeu Jânio Quadros (PTN) como presidente da República, nas eleições de 03 de outubro de 1960. Naquela época, presidente e vice-presidente eram eleitos separadamente. Portanto, embora tivessem projetos de governo diferentes, Jânio e Jango foram eleitos democraticamente e tomaram posse juntos, em 31 de janeiro de 1961. Entretanto, após sete meses de governo, no dia 25 de agosto do mesmo ano, o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo. Conforme a Constituição de 1946, que estava vigente na época, o sucessor legal da presidência da República deveria ser o vice-presidente, neste caso, João Goulart.

O Congresso Nacional aceitou a renúncia de Jânio Quadros, mas como Jango estava retornando de uma viagem oficial, o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli (PSD), assumiu provisoriamente a presidência da República. É neste momento que começaram os desafios de Jango que, embora fosse o sucessor legal da presidência da República, não pode presidir o país porque os ministros Odylio Denys (Exército), Sílvio Heck (Marinha) e Gabriel Moss (Aeronáutica) constituíram uma junta militar provisória para impedir João Goulart de assumir a presidência da República. Os chefes militares alegavam que Jango representava uma ameaça à estabilidade do país, uma afronta ideológica às forças conservadoras, tendo em vista que Jango estava intimamente ligado ao movimento camponês, sindical e grevista.

Para o historiador Carlos Fico, este episódio marcou o início de uma crise político-militar que durou 13 dias e quase descambou para uma guerra civil no Brasil, pois o grupo político de João Goulart resistiu por meio de uma mobilização intitulada Campanha da Legalidade e, só depois de muita negociação com opositores, Jango conseguiu assumir a presidência da República no dia 07 de setembro de 1961, porém, sob um regime parlamentarista, o qual teria como primeiro-ministro Tancredo Neves (PSD). Todavia, o regime parlamentarista no Brasil durou apenas um ano e quatro meses, e foi derrubado por meio de um referendo realizado em 06 de janeiro de 1963, no qual o povo decidiu pela volta do sistema presidencialista. Assim, Jango assumiu a presidência da República com plenos poderes, o que já era seu direito legal desde a renúncia de Jânio Quadros.

Na prática, o referendo não só restaurava a República presidencialista no Brasil, como também foi considerado uma importante vitória política de Jango que, naquele momento se consolidava como o herdeiro direto do legado político de Getúlio Vargas e o expoente máximo na defesa do trabalhismo, o que de fato contribuía para sua aproximação com as classes menos afortunadas da cidade e do campo, com o movimento sindical, estudantil e intelectual brasileiro. Apesar de ser um jovem político, Jango era habilidoso, carismático e conciliador. Tinha um diálogo fluído com as esquerdas, desde a ala mais radical até a mais moderada, e isso incomodava os conservadores, a elite econômica e a grande mídia. Mas, de fato, o que tornava Jango um presidente próximo das classes mais populares era sua proposta de realizar uma série de reformas estruturais no Brasil, que tinham como objetivo a redução das desigualdades econômicas, sociais e culturais, bem como a construção de uma sociedade mais justa e democrática. As reformas de base, assim como foi chamada por Jango e defendida desde o início de seu governo, ganharam força após a restauração do presidencialismo e logo se tornou uma bandeira defendida por vários movimentos sociais. De acordo com o historiador Daniel Reis, o programa de reformas de base era, basicamente, composto por cinco frentes:

(1) Reforma Agrária: consistia em promover a democratização da terra através do incentivo ao pequeno latifúndio, ao mercado interno e ao desenvolvimento industrial autocentrado. A reforma também estendia aos trabalhadores assalariados do campo os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos. (2) Reforma Educacional/Universitária: visava combater o analfabetismo, a valorização dos profissionais da educação, a democratização do ensino e pesquisa pública que, sob controle dos professores e estudantes, deveria ser voltado ao atendimento de suas necessidades sociais. (3) Reforma Política: tinha como propósito estender o direito de voto aos soldados e graduados das Forças Armadas e, principalmente, aos analfabetos, que eram metade da população brasileira. (4) Reforma Fiscal/Bancária: previa a criação de um sistema de financiamento voltado a atividades que garantissem a autonomia nacional, a estatização de setores considerados estratégicos, a ampliação do acesso ao crédito a pequenos produtores, o aumento da arrecadação do Estado e a limitação da remessa de lucro das multinacionais para o exterior. (5) Reforma Urbana: estabelecia o planejamento do crescimento das cidades, o combate à especulação imobiliária e a defesa dos direitos dos inquilinos.

Obviamente, as reformas de base defendidas por Jango desagradavam a elite econômica do país, os grandes latifundiários, os oficiais das Forças Armadas, a grande mídia e as alas políticas da direita liberal e conservadora. Por outro lado, o programa reformista de Jango o aproximava dos trabalhadores da cidade e do campo, posseiros, estudantes, intelectuais e graduados de baixa patente das Forças Armadas que, até então, incorporavam uma inédita participação popular em um governo. Contudo, grande parte do Congresso Nacional não era favorável às reformas estruturantes e a rejeitava veementemente, assim como os governadores dos mais importantes Estados, Adhemar de Barros (PSP – São Paulo), Carlos Lacerda (UDN – Guanabara) e José Magalhães (UDN – Minas Gerais). Deste modo, no início do ano de 1964, Jango se dispôs a liderar uma série de comícios pelo Brasil no intuito de aumentar a pressão popular pela aprovação de seu programa de reformas.  

O primeiro e único comício foi realizado no centro do Rio de Janeiro, no dia 13 de março de 1964. Entre a presença de 350 mil pessoas e de inúmeras lideranças políticas e sociais da esquerda moderada até as linhas mais radicais, Jango discursou em defesa das reformas de base e assinou alguns decretos. Para seu grupo político, o comício havia sido um sucesso, mas a verdade é que Jango inflamou ainda mais um cenário político que estava prestes a explodir. No entendimento da oposição, Jango radicalizou seu discurso, pois seu programa de reformas já havia sido rejeitado pelo Congresso e o presidente parecia querer colocar o povo contra os congressistas. Rapidamente, as direitas se uniram e, no dia 19 de março, levaram mais de 500 mil pessoas para as ruas da capital de São Paulo, em uma manifestação que ficou conhecida como Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

Até então, a disputa política parecia ser daqueles que defendiam as reformas contra aqueles que a rejeitavam. Contudo, o que estava em jogo iria muito além de ser apenas um embate entre reforma e contrarreforma. O presidente Jango passou a ser acusado por uma ala da oposição mais conservadora de estar conspirando um autogolpe para se manter no poder, fechar o Congresso e implantar uma ditadura comunista no Brasil e, assim, realizar as reformas de base contra a vontade da população. Hipótese esta que não passava de um delírio coletivo e que também congregava os oficiais das Forças Armadas que acreditam que a democracia estava em risco, já que no seu entendimento, Jango buscava quebrar a hierarquia e a disciplina militar cooptando para si o apoio dos soldados e graduados para se manter no poder por meio da força. Já a oposição de classe média acusava o governo de Jango de ser corrupto e de não ter rigor com o trato do dinheiro público, e este ponto era uma meia verdade, pois todos os governos da chamada República Populista (1946 – 1964) tiveram seus nomes envolvidos em corrupção e esbanjaram dinheiro público através de medidas para agradar a grande massa.

O contexto externo da Guerra Fria deixava o clima político ainda mais tenso no Brasil, e indicava que o rompimento da ordem legal seria apenas uma questão de tempo. É nesse momento que entram em cena as Forças Armadas, para ser mais específico, na madrugada do dia 31 de março, tropas comandadas pelo general Olympio Mourão Filho, coesos de que estavam salvando a democracia brasileira do comunismo, da corrupção e da subversão, partiram da cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, local onde estava o presidente João Goulart, naquele momento. Quando ficou sabendo da operação, Jango fugiu para Brasília, e na noite do dia seguinte, 01 de abril, foi para Porto Alegre. O presidente do Congresso Nacional, o senador Auro de Moura Andrade (PSD), convocou uma reunião extraordinária e, em meio a uma sessão muito tumultuada, declarou vaga a presidência da República e deu posse ao presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli (PSD). A partir deste momento, o golpe civil-militar rapidamente se transformaria em uma ditadura militar com inúmeras arbitrariedades, cassações de mandatos de opositores, suspensão de direitos constitucionais, perseguições políticas, censura midiática, repressão, violência, torturas e mortes a todos aqueles que foram considerados adversários da nova ordem que até então duraria 21 anos.

Com medo de uma possível guerra civil, João Goulart preferiu não dar ordens, embora tivesse o apoio irrestrito do governador do Rio Grande do Sul (Leonel Brizola) e do comandante do III Exército (José Machado Lopes), que era legalista e tinha em suas mãos 120 mil homens armados no Sul do Brasil dispostos a resistir. Jango preferiu sair da história pela fronteira com o Uruguai, onde recebeu asilo político em Montevidéu. O presidente estava deposto de seu cargo e, ao mesmo tempo, escorraçado de sua pátria. Isso quer dizer que o futuro do Brasil estava salvo, pelo menos era o que noticiava a grande mídia na época. No dia 01 de abril, o Jornal do Brasil enfatizava em seu editorial que “se instalou no Brasil a verdadeira legalidade”. No dia seguinte, 02 de abril, o jornal O Globo anunciava que fomos “salvos da comunização” pelos “bravos militares”, e que agora a “democracia está sendo restaurada”. Outros jornais como O Estado de S. Paulo, Tribuna da Imprensa, Jornal do Brasil, O Estado de Minas, O Povo e Correio Braziliense também saíram em defesa do golpe civil-militar de 1964, desinformando seus leitores e freando o senso crítico.

Alguns anos mais tarde, documentos comprovaram que os Estados Unidos apoiaram o golpe civil-militar no Brasil. De acordo com o historiador Marcos Napolitano, a operação Brother Sam deu apoio logístico por meio da utilização da Marinha e Força Aérea, que estavam a caminho do litoral brasileiro, caso os golpistas solicitassem de ajuda externa. Depois do golpe, os Estados Unidos também deram seu apoio diplomático ao Brasil, que reconheceu como legítimo o novo governo.

O fato é que o golpismo não derrubou apenas o presidente João Goulart, mas a possibilidade da implementação de um inédito projeto de governo que estava nascendo junto da participação de trabalhadores e movimentos sociais. Liderado pelas forças conservadoras e reacionárias, os golpistas tinham pavor só de pensar em perder seus privilégios e, por isso, eram ferrenhamente contrários à agenda distributiva de Jango e a seu amplo programa de reformas estruturais que, certamente, ajudaria a nos tornar uma sociedade menos desigual, mais justa e democrática para todos. Infelizmente, o golpe civil-militar de 1964 é uma triste memória nas páginas da história política brasileira, que destruiu a nossa jovem democracia e o nascimento de um novo projeto de nação.

André Luís A. Silva

Historiador, Professor e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná