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Teto de gastos: o fetiche do mercado brasileiro

Foto: Wikimedia Commons

22/11/2022 – 08:39:17

João Nieckars

Sem dúvida que você sabe, ou pelo menos tem uma boa ideia, sobre o que é um fetiche, certo? Já deve ter subido a sua mente a conotação sexual do termo, mas não é daí a origem dele, que surgiu no século XVII como uma expressão usada pelos portugueses para se referir a objetos de culto das populações da África. A palavra derivou do latim facticius, ou seja, algo “artificial” e “sortilégio”, por extensão.

Daí para a psicologia empregar o termo para designar fantasias sexuais foram alguns anos, apenas com as publicações de Freud, em 1905. De lá para cá, o termo saiu da academia e caiu na safadeza e, safadeza por safadeza, artificialidade por artificialidade, a mim parece que o tal teto de gastos do Brasil pode ser usado como o mais novo facelift etimológico da palavra fetiche – algo fantasioso que causa delírio no mercado.

O teto de gastos é uma linda ficção fiscal e, desde que passou a vigorar, em 2017, nunca foi respeitado. Mesmo no governo de Michel Temer, o criador do teto, ele já teve um furo de R$ 45,7 bilhões. No mandato de Jair Bolsonaro o teto envergou e, em 2019, foram R$ 77 bi fora da regra. Em 2020 o teto veio a baixo de uma vez: atingimos R$ 538 bi de gastos acima dele. Depois, em 2021, gastamos além do teto a bagatela de R$ 146,6 bi e para 2022 já estão previstos mais de R$ 100 bilhões acima.

Se o teto é o verdadeiro mito do Brasil e doutro lado o mercado é, como bem se sabe, muito pragmático quando o assunto é lucrar, porque os investidores são tão apegados a esta criação mitológica?

Vamos pôr em linhas bem simples a explicação: imagine que você é um agiota e, portanto, vive de emprestar dinheiro a quem precisa dele. Seu principal devedor nunca deixou de te pagar, mesmo passando, às vezes, por algumas dificuldades. Ele até já deixou de comer para pagar os juros que deve a você, mas sempre pagou.

Mesmo confiando razoavelmente neste devedor, você preferiria ver ele comprando carro novo e comendo picanha no domingo ou economizando o máximo que pudesse para assegurar o pagamento tranquilo dos juros e do capital que ele te deve? Provavelmente, se você é normal, escolheria a segunda opção e o mercado pensa exatamente da mesma forma.

Na prática o recado que o mercado manda ao fazer estardalhaço quando o presidente eleito diz que vai furar o teto de gastos para remediar a fome que assola os pobres é: deixem que passem fome, nós queremos é saber da nossa tranquilidade.

Dever não é o problema, afinal, quem não deve ou nunca deveu nada aqui? Tanto é assim que os EUA e a China, mesmo ricos como são, são os países com maiores déficits fiscais, perto dos 10% do PIB deles (e põe “PIBão” nisso!).

Sabe quem deve pouco? A Rússia, por exemplo, que fica no 1% do PIB camarada. Porque é um país rico e austero? Bulhufas! Porque ninguém quer emprestar para eles enquanto lá reinar um autocrata de ego inflado e nada na cabeça (lembra de alguém aqui no Brasil, inclusive).

Fato é que dever não é nunca foi o problema. O problema é não pagar a dívida, mas, considerando que o Brasil tem apresentado um crescimento econômico pequeno, mas constante (popular devagar e sempre) e que o nosso mercado exportador e interno vem se solidificando positivamente, o nosso déficit de 4,5% do PIB não causa qualquer tipo de medo, especialmente porque no contexto global, como se vê, estamos muito bem, obrigado.

 

Advogado, economista e professor de direito empresarial