Search
Close this search box.

“This is not America” ou “Aqui se respira luta”

Imagem: Reprodução

11/04/2022 – 07:12:01

Mari Malheiros

Entendo que a escrita sempre é sobre o que nos afeta. Seja um sentimento bom ou ruim, seja por um viés literário, informativo ou científico, quando colocamos no papel (ou no computador) os símbolos que representam o mundo no qual estamos inseridos (as), falamos, antes de falarmos sobre o assunto em si, sobre nós mesmos (as). Não consigo acreditar em escritoras (es) e pesquisadores (as) neutras (os) porque nossos lugares e afetos são determinados em maior ou menor escala pelas opressões e privilégios que impactam nossos corpos. E o não reconhecimento deste lugar também implica um lugar, como já nos ensinou a maravilhosa filósofa brasileira Djamila Ribeiro.  

Por isso, a partir deste lugar que assumo de uma mulher da classe trabalhadora, latino-americana, lida como branca no Brasil e que teve a oportunidade de acessar o ensino superior e a pesquisa científica, com um posicionamento que não é neutro e – ainda bem – nem universal, escrevo hoje sobre “This is not America”, clipe lançado pelo rapper porto-riquenho Residente e com participação da dupla Ibeyi, formada pelas irmãs franco-cubanas Lisa-Kaindé e Naomi Díaz. Escutei esta canção pela primeira vez há cerca de três semanas, logo quando o videoclipe foi lançado nas plataformas digitais. Há algum tempo um videoclipe não me afetava tanto: o ritmo, a letra, as imagens, a potência de tantas cenas que poderiam ser congeladas, a força de tudo isto junto e misturado. Já assisti algumas várias vezes e ainda não consegui pegar todas as referências. Aliás, se você não viu, deixo aqui o link no Youtube do vídeo legendado para que assista e seja afetada (o):

Acompanho a carreira de Residente desde que era vocalista da icônica Calle 13, com suas letras provocadoras e contestadoras das políticas de promoção do capitalismo neoliberal e imperialismo estadunidenses não só em Porto Rico, mas em toda a América Latina. Há dez anos canções da banda como “Latinoamerica”, “El aguante”, “Vamo a portarnos mal” estão na minha playlist e me afetam para sair do academicismo no qual categorias como capitalismo, colonialismo, imperialismo se constroem. A arte tem esta função, que não é utilitarista, mas traz instrumentos que constroem políticas de resistência: cria novas linguagens e dialoga com pessoas que se deixam afetar por suas estéticas e desafios expostos.

Eu não consigo falar sobre cada detalhe de “This is not America” porque me falta conhecimento teórico sobre todas as referências[1]. De qualquer forma, este videoclipe afetou tanta gente que tem muitos vídeos e textos trazendo detalhes sobre as referências. Vale a pena ler para conhecer mais sobre as culturas e organizações que compõem a América Latina.

Quero falar sobre três aspectos do clipe, em especial. Primeiro, o título. “This is not America” faz menção a “This is America”, do rapper estadunidense Childish Gambino, outra canção igualmente impactante pela crítica social, especialmente a violência aos quais homens negros vivenciam nos Estados Unidos da América (EUA), lançada em 2018. A canção é uma dura crítica ao racismo na terra da liberdade e tolerância, no caso, os EUA que é chamado de América. A crítica que Residente traz não é de certo ou errado ao que canta Gambino, porque a luta contra o imperialismo também é antirracista e a solidariedade das periferias globais também dialoga com as periferias nos grandes centros mundiais. O que Residente traz é uma complementação: a América não é somente os EUA. Nós, do Canadá à Terra do Fogo, no extremo sul do Chile e da Argentina, somos americanos. Nosso continente possui uma diversidade cultural, política e social enorme, que nos aproxima mas também nos particulariza. Está mais que na hora de nos vermos como americanas (os), gente com um passado colonial comum e que hoje sofre as consequências das colonialidades que permanecem agindo nos espaços de poder, saber e subjetividades.

O segundo elemento que trago são as várias menções que Residente faz ao Brasil, inclusive ao presidente Bolsonaro comendo carne e limpando a boca imunda na nossa bandeira, enquanto uma criança indígena assiste tudo com raiva. Existem outras referências aos povos indígenas daqui, às favelas e ao futebol. Para todos (as) nós, que somos uma ilha (ainda que gigante) de falantes de língua portuguesa onde prevalece o espanhol e o inglês, ainda é uma dificuldade encontrarmos vínculos latinos. Porém, nós somos: ainda que milhões de brasileiros (as) tenham ascendência europeia recente (a vinda de italianos (as), alemães (ãs), poloneses (as) e outros (as)) o que faz com que tenham a pele mais clara perto da maioria da nossa população miscigenada, negra e indígena, todos (as) somos lidos como latino-americanos (as) pelo resto do mundo. Não importa se você tem olhos azuis e fale alemão fluente: quando chegar na Europa você será só mais um estrangeiro, latino-americano lá. Precisamos fortalecer nossa solidariedade: temos um passado colonial comum de exploração de nossos recursos naturais, um genocídio que permanece contra os povos indígenas e a marca da escravidão dos povos racializados em nossas veias. Também carregamos em nossas veias latino-brasileiras, os (as) desaparecidos (as), as ditaduras e as intervenções dos EUA em nosso território. Nós também somos América. Nós também somos América Latina.

Por fim, o clipe apresenta as diversidades de resistências indígenas, negras, anti-capitalistas, anti-coloniais e feministas que acontecem no nosso continente. Somos pautados diariamente com as questões das elites, burguesias e grandes corporações globais como se estes interesses também fossem nossos. A quem interessa salvar o modelo capitalista/colonial? A quem interessa destruir os povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhas e tradicionais que defendem as florestas e a natureza? A quem interessa a permanência de gente branca e rica no poder? Trago estas questões para refletirmos o lugar em que estamos e as imensas possibilidades de pensarmos novos modos de produção econômica, política e cultural a partir do que estes vários povos, retratados no videoclipe, nos ensinaram e ensinam em pouco mais de quinhentos anos de invasão e exploração de seus territórios. Tem muita gente resistindo, lutando e defendendo suas vidas, ainda que a TV e os meios de comunicação em massa não mostrem.

“This is not America” é um convite para pensarmos as veias abertas do nosso continente e, a partir de nossas memórias que são marcadas por tanto sangue, construirmos um futuro que possibilite a vida para todos os povos. Aqui se respira luta.

[1] Deixo o texto deste blog, em português, com várias referências da música para quem quiser saber mais sobre os vários símbolos deste clipe https://evauviedo.wordpress.com/2022/03/22/this-is-not-america-lista-de-referencias/

Mari Malheiros

Mestra em Integração Contemporânea na América Latina, pesquisadora do Grupo de Pesquisa ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e Seus Espaços (CNPQ), advogada e militante da Marcha Mundial das Mulheres. Atualmente é assessora parlamentar da Vereadora Cris Wainer (PT), em Guarapuava/PR.