“Tiradentes” – Acervo Museu Paulista (USP), Brazil – Oil painting on canvas by Oscar Pereira da Silva (1867 – 1939).
André Luís A. Silva
21/04/2023 – 14:43:20
Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, nasceu no ano de 1746, na Capitania de Minas Gerais. Era filho de latifundiários, mas que perderam todas as suas terras por motivo de dívidas. Aos 11 anos de idade, Tiradentes ficou órfão de pai e mãe e, desde então, começou a trabalhar como mascate, tropeiro, minerador e, por influência de seu tio, trabalhou como dentista, daí a origem de seu apelido. Em 1775, ingressou como Alferes no Regimento Regular de Cavalaria de Minas Gerais – que na época era uma unidade do Exército Português, e participou de várias expedições de reconhecimento do sertão brasileiro, porém, no ano de 1788, pediu demissão devido ao seu descontentamento com a profissão.
Todavia, foi durante as expedições que participou pelo sertão que Tiradentes teve contato com vários grupos que criticavam o domínio português sobre a região. A partir de então, Tiradentes se tornou um ativista político, e liderou uma conspiração separatista que ficou conhecida como Inconfidência Mineira, em 1789, que nada mais era do que um movimento que envolveu as elites de Minas Gerais, ou seja, proprietários de terra, intelectuais, clérigos e militares.
A principal razão da organização deste movimento foi por conta do descontentamento com o controle da Coroa Portuguesa na região, principalmente, na Capitania de Minas Gerais. De fato, essa era a grande unanimidade entre os líderes do movimento, bem como a frustração sobre a cobrança de impostos sobre o ouro, conhecido como o Quinto Real, e a Derrama, um pagamento de impostos de forma forçada, que na prática, tratava-se de um confisco realizado pela Coroa Portuguesa caso a cota de cem arrobas de ouro anuais não fosse alcançada. Portanto, se a arrecadação por meio do Quinto Real ficasse abaixo da meta, ela seria preenchida pela Derrama. Outro motivo de descontentamento foi o aumento da fiscalização para combater o contrabando e a sonegação do ouro que se intensificou durante o século XVIII, o que aumentou consideravelmente a revolta dos colonos, pois muitos adquiriram enormes dívidas impagáveis nesse período.
De acordo com o historiador Marco Antonio Villa, o movimento dos inconfidentes também defendia a independência de Minas Gerais e a proclamação de uma república no local, a criação da casa da moeda, a abolição da escravidão e a transferência da capital da capitania para São João del-Rei, que na época era situada em Vila Rica. Porém, essas ações não eram uma unanimidade entre os líderes inconfidentes, que discordavam em vários pontos, tendo em vista o interesse de cada grupo.
Ainda assim, depois de organizado o movimento, os inconfidentes liderados por Tiradentes elaboraram um plano inicial que consistia em derrubar o governador da Capitania de Minas Gerais, o português Luís António Furtado de Mendonça, prendê-lo e depois executá-lo. Os inconfidentes acreditavam que teriam o apoio em massa da população que também estava descontente com a dominação portuguesa na região. Mas, o plano dos inconfidentes nem sequer foi colocado em prática, pois ele acabou sendo vazado por integrantes do próprio movimento, que delataram o plano para as autoridades locais em troca do perdão de dívidas e anistia. O principal delator foi Joaquim Silvério dos Reis, que escreveu uma carta ao governador de Minas Gerais alertando sobre a existência de um movimento conspiracionista.
Com efeito, Tiradentes e os demais inconfidentes foram presos, acusados de traição pela Coroa Portuguesa. Alguns dias depois, todos os integrantes do movimento foram levados para o Rio de Janeiro, e lá aguardaram presos por aproximadamente três anos o julgamento que condenou sete inconfidentes a pena de degredo perpétuo, e quatorze à forca. Mas todos os condenados à morte receberam o Perdão Real, e tiveram suas penas comutadas, exceto Tiradentes, que no dia 21 de abril de 1792, foi enforcado em praça pública, e depois teve seu corpo esquartejado e exposto em vários lugares da cidade do Rio de Janeiro para que servisse de exemplo a futuros revoltosos contra a Coroa Portuguesa.
Mas qual o motivo de somente Tiradentes ter sido executado? Segundo o historiador Kenneth Maxwell, um dos maiores especialistas em História Ibérica, desde o início do movimento, Tiradentes se apresentou como o principal líder e responsável pela Inconfidência, além de que ele era um sujeito muito conhecido nas Capitanias de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Portanto, sua execução pública serviu como um meio para reforçar o poder da Coroa Portuguesa sobre estas regiões, principalmente, para intimidar possíveis novos movimentos separatistas.
Após o episódio, a história de Tiradentes foi silenciada durante décadas, tendo em vista que, para a Coroa Portuguesa, ele era um separatista, um republicano traidor. Entendimento este que nada mudará durante praticamente todo o período imperial do Brasil (1822 – 1889), até porque os monarcas D. Pedro I e D. Pedro II eram descentes diretos da Coroa Portuguesa, contra a qual, Tiradentes tentou uma conspiração.
A história de Tiradentes só começou a emergir na passagem das décadas de 1870 e 1880, durante a decadência do Império Brasileiro e o rápido avanço do Partido Republicano Paulista na esfera política. Intelectuais como Luis Gama, por exemplo, começaram a escrever em periódicos a história de Tiradentes, em uma tentativa de personificar sua trajetória como um exemplo libertário e republicano. Com efeito, a personificação de Tiradentes se intensificou, principalmente, depois da Proclamação da República, em 1889, tendo em vista que era necessário criar uma narrativa histórica que fundamentasse a nova forma de governo, isto é, uma nova identidade nacional que se desvinculasse do antigo Império Brasileiro, algo que explicasse o que é o Brasil e o que é ser brasileiro. Por certo, é dentro deste contexto que foram criados uma nova (e atual) Bandeira Nacional, o Hino Nacional Brasileiro, o Brasão da República, uma nova Constituição Federal e um novo Código Penal. Mas, também, era necessário forjar um herói para a república, e é nesse momento que Tiradentes entra em cena.
Em 1890, apenas um ano após proclamada a República, o dia 21 de abril, data da morte de Tiradentes, foi definido como feriado nacional e, a partir de então, seu codinome foi adotado para nominar palácios governamentais, praças, ruas, avenidas e cidades por todo o Brasil, intensificando um grande culto cívico à Tiradentes, presente até os dias de hoje.
A estratégia da República era forjar um herói para a nova ordem política, e identificou em Tiradentes o personagem perfeito para ser criado sobre sua história, um mártir brasileiro que lutou e deu a vida por seus ideais, ou seja, a liberdade e a república. Antes de Tiradentes, outros nomes foram candidatos a heróis, como por exemplo, Marechal Deodoro da Fonseca, Benjamin Constant e Duque de Caxias, mas eles não tinham profundidade histórica, só eram conhecidos entre seus pares, além de que, eram personagens vivos e não possuíam ligação com a grande massa da população. Já Tiradentes respondia perfeitamente aquela urgência histórica, pois havia sido um militar, defendia os ideais republicanos e abolicionistas, possuía um histórico de luta, pois se tratava de um revoltoso que se levantou e deu sua própria vida contra a opressão portuguesa durante o período colonial.
Mas, ainda assim, somente uma narrativa para sustentação do novo regime não era suficiente, também era preciso forjar um material artístico que pudesse simbolizar o imaginário da República Brasileira. Então, em 1890, o pintor e escultor Décio Villares, fez um importante trabalho estético, ele pintou um busto de Tiradentes com barba e cabelos compridos e com olhar ao infinito, semelhante às idealizações de Jesus Cristo. Ora, retratar Tiradentes desta forma foi uma estratégia utilizada para convencer a população de que ele era um herói republicano, tendo em vista que a sociedade brasileira, na época, era predominantemente cristã. Portanto, se Jesus Cristo é um mártir religioso para seus seguidores, que veio para os salvar, foi traído e se sacrificou por um ideal coletivo, do mesmo modo, Tiradentes é o mártir cívico para a República. A simbologia cristã direcionada à Tiradentes também apareceu em várias outras obras de Eduardo de Sá, por exemplo, e nas caricaturas em revistas ilustradas que circulavam na época.
Entretanto, não existe sequer uma imagem de Tiradentes, não existem retratos de sua aparência de quando estava vivo. Sua imagem foi, literalmente, inventada pelos idealizadores da República. E isso se explica pelo fato de que Tiradentes era militar e, por este motivo, não poderia ter barba e cabelos compridos, assim como foi amplamente retratado em quadros, esculturas e caricaturas. E, embora Tiradentes tenha ficado preso por aproximadamente três anos, é muito provável que ele teve sua barba e seu cabelo raspado para evitar a proliferação de piolhos, pois era uma norma dentro das prisões. Portanto, veicular a imagem de Tiradentes fazendo alusões a Cristo foi um apelo às tradições cristãs, que facilitavam a transmissão da imagem e da narrativa de que Tiradentes era um mártir daquela República que havia acabado de nascer, um Cristo Cívico, expressão utilizada pelo historiador José Murilo de Carvalho para se referir ao herói forjado pelos republicanos.
Passados mais de dois séculos de sua morte, Tiradentes continua sendo alvo de grandes debates na historiografia brasileira. Discute-se, até hoje, seu verdadeiro papel na Inconfidência Mineira, ou seja, se ele realmente era o principal líder ou não do movimento, se seus pensamentos eram radicais ou moderados, se ele era um republicano convicto, entre outras questões. Isso faz com que a memória de Tiradentes seja disputada tanto pela direita, quanto pela esquerda política, e nos revela o quanto os heróis são símbolos poderosos, referências de ideias, aspirações e de identificações coletivas.
A história de Tiradentes não é uma mentira, mas sua personificação como herói cívico-religioso, mártir, patriota, símbolo da pátria, integrador e portador da imagem de uma nação inteira, é parte do estabelecimento de uma nova ordem política, de uma invenção de uma jovem República, no qual, Tiradentes serviu como propaganda.