Todo dia a mesma noite: quanto vale uma tragédia?

Foto: Reprodução/Netflix

30/01/2023 – 08:35:10

Luiz Felipe

* Alerta: o texto contém spoilers da série

Imprudência, imperícia, corrupção, irresponsabilidade, negligência, omissão, avareza, inércia, egoísmo e estupidez. Esse conjunto de vocábulos do nosso léxico português ainda não basta para definir com clareza os eventos ocorridos na noite do dia 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Há dez anos, meu pai trabalhava em uma empreiteira aqui da cidade que tinha obras por todo o país e naquele domingo de 2013, ele levantou cedo para se preparar para a viagem que faria para o Rio Grande do Sul, especificamente para a cidade de Santa Maria. Eram por volta de 07h da manhã e eu ainda estava deitado e ele na cozinha ouvindo uma estação local que noticiava um grande incêndio no sul do país. Já acordado, passei a ouvir cada detalhe que o jornalista comunicava, pouco se sabia até então, mas a certeza é de que muitas pessoas haviam morrido.

O domingo ensolarado versou sobre as notícias em todas as emissoras de TV e rádio que traziam informações, uma mais triste do que a outra, sobre a contagem de corpos que só aumentava a cada novo boletim. 242 vítimas fatais e outras 600 em estado grave, sendo o segundo evento mais trágico do país, atrás somente no grande incêndio do Grand Circus, em Niterói, no RJ, em 1961. A causa oficial do incêndio foi apontada como fogo no teto da boate que era composto por espuma acústica para isolamento do som, o fogo foi causado pelo uso indevido de artefato pirotécnico em ambiente fechado. O evento botou no banco dos réus quatro acusados, sendo Elessandro Callegaro, o Kiko; Mauro Hoffmann; Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha Leão. Os quatro foram acusados de homicídio simples com dolo eventual e tentativa de homicídio.

A boate era uma das mais famosas da cidade de Santa Maria e estava em atividade desde 2009, todas as noites as filas para entrada davam voltas no quarteirão e ali começava a negligência dos órgãos públicos. Durante o curso da ação penal, muito se questionou as obrigações de fiscalização da Prefeitura de Santa Maria e do Corpo de Bombeiros, sobre quem de fato seria o responsável pela fiscalização do local. Na noite da tragédia, a casa contava com pelo menos mil pessoas, sendo que a capacidade máxima permitida era de 691 presentes.

Segundo a investigação, uma série de erros que foram cometidos também colaboraram para que o espaço continuasse funcionando, desde a liberação com base em documentos precários, até mesmo pela falta da fiscalização. Uma lista robusta foi apresentada pela acusação, em que se pode destacar:

1. Um documento precário que foi utilizado indevidamente como plano de prevenção contra incêndios;

2. O espaço funcionava com licença apenas dos bombeiros, sem o devido alvará de localização da prefeitura de Santa Maria;

3. Durante um ano, a Kiss funcionou sem o alvará de incêndio dos bombeiros, que só seria renovado em agosto de 2011.

4. Quando o incêndio ocorreu, o alvará estava novamente vencido e não era renovado desde o ano anterior.

5. No ano de fundação, a boate foi multada, quando na verdade deveria ter sido fechada, mas a corrupção local era tanta, que em vez de fechar, quatro multas foram aplicadas entre agosto e dezembro de 2009 e mais uma vez a imprudência falou mais alto.

6. Com várias multas e sem alvará, o espaço deveria ter sido fechado. Mas alguém na prefeitura de Santa Maria provavelmente fez vista grossa e foi subornado.

7. Em abril de 2012, a prefeitura fez uma vistoria e constatou que o alvará de incêndio estava por vencer, mas nenhuma providência foi tomada. O alvará venceu poucos dias depois e não foi renovado, estando o mesmo vencido na noite do incêndio.

Segundo o Corpo de Bombeiros, das 242 vítimas, 235 morreram na noite do incêndio, a maioria delas por asfixia devido a inalarem a fumaça tóxica do incêndio. Outras vítimas sofreram traumatismo craniano, pois durante a evacuação forçada e desesperada, muitas pessoas foram atropeladas pelo caminho e enquanto estavam no chão foram pisoteadas, chutadas e acertadas por partes da estrutura que desabava com o fogo. De acordo com os bombeiros que faziam o resgate dos corpos, a todo momento os celulares das vítimas tocavam e pelos visores era possível identificar um “pai” ou “mãe” ligando em desespero para confirmar se os filhos estavam bem. Na tentativa de fugir, muitos procuraram os banheiros, que sem a ventilação adequada também colaborou para que os que ali buscaram refúgio morressem intoxicados pela fumaça.

A fumaça, cabe ressaltar, não continha apenas gás carbônico, mas uma substância letal chamada cianeto, que era parte composta da espuma de poliuretano, que ao queimar, liberava o composto tóxico, terminou por causar uma parada cardiorrespiratória nas vítimas.

A série da Netflix

Com um monte de atores renomados, mas com um sotaque gaúcho forçado em demasia, além de um enredo brutalmente chocante, acachapante e até mesmo com falta de bom senso para muitos, a Netflix produziu a série “Toda Dia A Mesma Noite”, que foi lançada no último dia 27, data em que a tragédia completou dez anos.

Para um grupo composto por cerca de 40 famílias, a intenção é processar a gigante do streaming, possivelmente por danos morais, já que a principal reclamação é de que a Netflix teria usado a tragédia para lucrar financeiramente com a produção, que já figura no top 10 das séries mais vistas pelos assinantes do serviço no Brasil, que tem também versão em inglês para outros países.

Segundo a advogada de uma das associações, a Netflix exagerou e ultrapassou os limites da tragédia. A reclamação é de que mesmo no trailer, isto é, antes mesmo de assistir aos cinco episódios da série, a produção chocou muitos pais aos mostrar uma cena do drama em que retrata a exposição de diversos cadáveres no piso do ginásio de esportes de Santa Maria para reconhecimento dos familiares. Para a advogada contratada, Juliane Korbm, muitos pais não conseguiram adentrar ao ginásio nas horas seguintes à tragédia para fazer o reconhecimento de seus filhos e nunca tinham visto fotos ou vídeos do local; a recriação da cena pela Netflix forçou as famílias a reviverem aquele momento doloroso e traumático.

O enredo

Com um elenco já conhecido das telenovelas, em especial da TV Globo, o grupo conta com nomes de peso como Thelmo Fernandes, que vive a personagem Pedro, um dos protagonistas e pai da jovem Mari, nome fictício para uma das vítimas. Em uma das cenas talvez mais pesadas do drama, Pedro está à procura da filha junto de sua esposa e da filha mais nova; eles acreditam que a menina ainda está viva, uma vez que o registro do hospital não mostra a saída do corpo. Todavia, ao chegarem ao ginásio, Pedro é recebido pela capitã da Brigada Militar que o encaminha para dentro do ginásio.

Em um primeiro momento, ainda atordoado, Pedro não reconhece o corpo da filha em meio aos diversos corpos de jovens que ali estão deitados. Ao ouvir um dos telefones das vítimas tocar, ele tem a ideia de pegar o telefone e ligar para o celular da filha enquanto caminha entre as fileiras de corpos. Ao chegar perto do fim da fila, ele ouve um telefone tocar e ao olhar para o chão, reconhece o tênis que ele e a mulher haviam dado de presente de aniversário para a filha. A cena é de uma tensão e uma energia muito densa, que choca a qualquer um, pois Pedro agora está sentado no chão do ginásio com a cabeça da filha morta apoiada em uma das pernas enquanto chora sobre o cadáver da moça.

Outros fatores marcantes também são as cenas em que se retratam o processo contra os pais das vítimas que acusaram o Ministério Público de ser conivente com um de seus pares que sabia das irregularidades da boate Kiss, o que teria – supostamente – livrado a cara de secretários e até do prefeito de Santa Maria.

Diferente de outras séries inspiradas em acontecimentos verídicos, esta não buscou alternar os capítulos entre ficção e realidade utilizando de imagens reais, uma das únicas imagens reais utilizadas é de um pronunciamento da então presidente da República, Dilma Rousseff, que vai à Santa Maria para acompanhar os trabalhos e também o funeral das vítimas.

A associação que pretende processar a Netflix também reclama do fato de que em nenhum momento foi procurada pela produtora informando-os de que uma série dramática estava sendo produzida; a declaração gerou uma espécie de desconforto entre as famílias, já que a associação “original”, isto é, a primeira formada após a tragédia, publicou uma nota dizendo que sabia das gravações e que se sentia representada tanto pela série quanto pelo livro de mesmo nome. Curiosamente, a associação – Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) é contemplada na série.

Os limites da arte

Tornou-se um costume das produtoras de cinema, em especial nos EUA e mais tarde em outros países, reviver tragédias ou histórias marcantes em filmes ou seriados. Muitas vezes, essa reprodução dos acontecimentos reais, embora muito envolvente para o público em geral, acaba por acionar gatilhos que fazem as vítimas dos acontecimentos.

Entre 2002 e 2021 pelo menos seis filmes e documentários foram produzidos com foco exclusivo ao ataque terrorista contra as Torres Gêmeas, em Nova York. Em 2017, a Discovery produziu a série “Manhunt – Unabomber”, que conta a história do terrorista Theodor (Ted) Kaczynski, que enviava bombas pelo sistema de correios dos Estados Unidos e fez diversas vítimas fatais até ser preso pelo FBI em sua cabana no meio da floresta. Lançada em 2022, a Netflix se envolveu em uma polêmica nos Estados Unidos e lançou a série “Dahmer – Monster: The Jeffrey Dahmer story” (Dahmer – Monstro: a história de Jeffrey Dahmer) e que no Brasil foi lançada com o nome de “Dahmer: um canibal americano”, que como o próprio nome diz, trata-se da história de um psicopata assassino que matou 17 homens e garotos entre os anos de 1978 e 1991, todos de forma hedionda como estupros, necrofilia e canibalismo. Em 1992, Dahmer foi condenado por 16 dos 17 assassinatos, sendo todas penas perpétuas que acumularam mais de 900 anos de prisão. Ele foi morto por outro prisioneiro dentro do instituto correcional de Colúmbia, em Wisconsin, nos Estados Unidos.  Já a HBO Max reviveu recentemente um crime brutal que chocou o Brasil nos anos 1990: o assassinato da atriz Daniela Perez, filha da escritora Glória Perez.

Diversas são as produções que contam casos e mais casos horripilantes envolvendo mortes e outros crimes, mas a pergunta que fica é: existem limites para a arte? O que pode e o que não pode ser feito? Temos o direito de fazer alguém reviver um acontecimento trágico? Para muitos pode não ser nada, mas quem já perdeu algum familiar ou amigo sabe o tamanho do trauma e como o sentimento doloroso é algo que não desaparece, apenas “repousa” por breves momentos.

O que parece ter faltado aos produtores foi um pouco de bom senso e uma conversa direta com as famílias das vítimas. E antes que algum boca de sacola fale, as famílias não pedem indenização à Netflix, apenas que a produtora retire refaça o trailer e não deixe cenas pesadas em exibição, nem que vise o lucro em cima da tragédia.

O escárnio da Justiça Brasileira

Passados dez anos de zombaria com as famílias das vítimas, o tão esperado julgamento foi marcado para 2021 após uma série de recursos dos advogados dos acusados e dos familiares das vítimas. Após decisão judicial, os réus foram a júri popular no Rio Grande do Sul e acabaram por serem condenados, todos com penas superiores a 18 anos.

O julgamento tem alguns trechos disponíveis no YouTube e demonstra momentos de tensão e forte emoção das testemunhas que relataram palavra por palavra o que foi o horror das vítimas dentro do espaço. O drama protagonizado pelos réus deveria lhes render um Oscar pela interpretação e atuação. O escárnio da Justiça permitiu que quatro dos responsáveis tivessem a execução das penas suspensas no mesmo dia em que foram condenados.

Ao fim da leitura da sentença de quarenta e três páginas, o juiz de Direito, Orlando Faccini Neto, destaca: “Ao término da leitura dessa decisão, recebi a notícia da concessão da liminar em habeas corpus preventivo impetrado pela Defesa de Elissandro, estendendo-se os efeitos aos demais réus Mauro, Marcelo e Luciano, de modo que, mantenho a decisão, porém, suspendo a execução da pena”.

Em agosto de 2022, o belíssimo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, anulou o julgamento a pedido da defesa dos quatro réus condenados em primeira instância. Com uma tremenda cara de pau, a defesa conseguiu o habeas corpus enquanto a sentença ainda era lida por Faccini, mas depois a decisão foi derrubada pelo Ministro Luiz Fux, do STF. Os quatro réus seguem soltos e aguardando um novo julgamento que ainda não tem nova data para ocorrer.

Luiz Felipe de Lima

• Historiador •

Formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste - Unicentro;

Professor de História e Sociologia;

Pesquisador.