Imagem: Reprodução
06/03/2023 – 07:42:52
Luiz Felipe
Durante uma corrida pela cidade comento com o motorista do app que está me levando ao passar por um antigo ponto comercial no bairro Batel: lá se foi mais um boteco raiz. O bar ao qual eu estava me referindo era um dos últimos no bairro Batel e nas redondezas.
Principal referência popular dentro do campo durante os anos 80, 90 e 2000, os bares estão desaparecendo aos poucos, mas quando digo “bar”, estou fazendo do boteco mesmo, aquele raiz, com balcão de madeira crua, geralmente tábua de forro, com um monte de lascas de madeira se soltando e com banquinhos/banquetas altas em madeira envernizada para os clientes. O cliente, também raiz, é um trabalhador que dá aquela passada no barzinho antes de ir para casa levar a carne para a janta que a esposa está preparando. Ele veste uma calça social surrada, marrom, uma camisa social também já muito usada, com finas listras azuis no fundo branco, um bigodinho e um boné de algum candidato a prefeito ou de alguma loja de material de construção.
No balcão a regra manda que deve ter uma estufa com algum salgado de aparência duvidosa que está adormecido por ali há dias. Tem que ter um prego de ponta para cima também em um bloquinho de madeira com resultados do jogo do bicho esperando para serem entregues aos apostadores. Ali também tem um baleiro de vidro e giratório, um espetáculo – não para os homens mais velhos, mas para a gurizada que acompanha ou vai buscar o pai a mando da mãe. É um estereótipo? É sim, mas é real. Eu vivi isso. Nesse mesmo balcão, também tem que ter um pote de vidro com algum tipo de conserva (ovo, salsicha/vina, pepino, cebola ou outra iguaria apreciada pelo dono). Em algum canto, disputando espaço com a mesa de sinuca com bordas brancas, tem alguma mesa de plástico amarela, azul ou vermelha, de alguma marca de cerveja (Skol, Antarctica ou Brahma, respectivamente), em que quatro senhores, vestidos de maneira igual ou bem próxima, jogam cacheta ou truco. E embora a mesa seja de marca de cerveja, ninguém ali bebe cerveja, é um copinho, a famosa ‘meiota’ que os piá de prédio chamam de “shot”, que é aquele para virar em um gole só. E a bebida? Uma aguardente, que na verdade é a boa e velha pinga, geralmente uma Jamel ou Três Pipas (essa é das antigas) que tinha SÓ 40% de teor alcoólico, era etanol batizado com água.
Lembra da garotada que ia atrás do pai no bar? Nesse mesmo bar, uma pequena vitrine com itens muito perigosos: doce de amendoim, copo de leite, suspiro, doce de abóbora, Maria-mole e outros. Uma lembrança maravilhosa da infância. Essa piazada era subornada pelos pais, que muitas vezes estavam nos bares contra a vontade de suas esposas e quando chegavam lá dizendo: “pai, a mãe mandou o senhor ir pra casa”, ouviam como resposta: “o pai já vai, quer um doce?”. Mais de uma vez eu ouvi isso e só posso rir e sentir saudade de um tempo maravilhoso. Meu pai era um freguês fiel desses estabelecimentos, conheci vários com ele. Isso talvez explique o porquê tenho uma coluna chamada “Vai Pro Bar, Luiz” (risos!).
E é importante também analisar um lado um trágico dessas histórias sem romantizar todo o seu registro. Eu, felizmente, vivi em um lar com ausência de violência causada pelo álcool. Como toda criança que aprontou em sua infância, levei uns tapas da minha mãe, uns olhares meios tortos do meu pai, mas nunca um tapa. Crescemos sempre com essa consciência, de que as coisas não podiam ser resolvidas na pancada e nunca foram. Ele, meu pai, sempre trabalhando fora da cidade e minha mãe em casa com a gente, mas crescemos felizes assim mesmo, acabamos nos acostumando com a ausência por motivos de trabalho, sabíamos que a distância era para manter a nós e a nossa casa e a cada dois ou três meses ele estava ali, junto de nós. É assim até hoje. Nossos problemas eram muito pequenos perto de conhecidos nossos, nosso lar não era abatido pela desgraça do álcool e da violência. Querendo ou não, apesar de tudo, éramos privilegiados. Era comum ouvirmos histórias de pessoas próximas, de pai de amigos que bebiam e batiam em suas esposas. Esse era o lado trágico: a violência doméstica, que naquela época infelizmente não tinha toda a atenção que tem hoje. Muitas mulheres apanharam caladas.
Felizmente, as lembranças desses ambientes que tenho hoje são normais, sem episódios de tristeza ou dor como para muitas pessoas. E talvez por isso o que me chama a atenção é o fato desses ambientes estarem sumindo aos poucos. Cada pessoa enxerga nesses espaços aquilo que tem como referência. Hoje, os bares, estão sendo substituídos por farmácias, conveniências e outros estabelecimentos. Guarapuava perdeu vários desses bares raízes, são poucos os que ainda resistem ao avanço da modernidade, seja pelo avanço da própria ideia comercial ou pela mudança de geração que está ocorrendo. A geração do meu pai era fiel a esses espaços, enquanto que a minha geração ainda pegou resquícios do bar raiz, mas quando estava com idade para frequentar, já encontrou uma onda totalmente diferente. Hoje, os que estão nos dezoito anos também já estão próximos de um ideal de bar bem diferente, é uma mudança normal, que não resiste ao tempo, ainda que seja uma mudança estranha para mim. Por isso que se chama saudosismo.
Embora estejamos tratando aqui de um conceito definido pelo sociólogo Émile Durkheim, a socialização secundária tem avanços e modificações à medida em que os tempos também vão se modificando. Aqui talvez eu arrume uma encrenca com os colegas sociólogos, mas o conceito não é imune à mudança do tempo. As relações estabelecidas hoje por meio desses processos de socialização que utilizam como espécie de muleta a relação digital, apresentam processos distintos que talvez nem sejam temas de estudo para a sociologia, mas para a psicologia e a psicanálise. A relação do bar, hoje, é muito mais baseada na ideia do ter e não do ser. Beber por beber você o pode fazer em casa, mas qual é a motivação para juntar um grupo de amigos e gastar trezentos reais em único final de semana, pagando oito reais uma cerveja?
A necessidade de construir esse espaço coletivo do convívio parece demandar algo que já está em falta na construção do próprio processo de socialização. Durkheim definiu como socialização secundária a igreja, a escola, o trabalho, o Estado. Então aqui entrarei em contradição e me obrigo a perguntar: quem mudou – as pessoas ou o conceito? Agora terei que apelar ao mestre Bauman: as relações são superficiais. Então talvez o conceito se mantenha o mesmo, talvez a nossa forma de encarar tudo e todos tenha se desmanchado ao passar do tempo, de modo que jogamos fora aquilo que vimos como referência da geração dos nossos pais e agora estamos tentando imprimir nossa marca e jeito no dia a dia.
De maneira um pouco mais relapsa e relaxada, no sentido pejorativo do termo, é possível apontar ao menos dois aspectos importantes para pensar o conceito de Durkheim. Primeiro: os padrões rígidos criados pelo corpo social, isto é, o conjunto de normas espontâneas, aquelas aplicadas pelas pessoas, continuam trazendo consigo um arcabouço totalmente hipócrita e moralista. Mas por mais paradoxal e estranho que possa parecer, esse mesmo conjunto hipócrita e carregado com falso moralismo, é o mesmo que criou nessa nova esfera de socialização um ambiente que está à margem daquele conjunto de sanções espontâneas da igreja, da escola, do trabalho e do Estado. Você pode desmaiar de bêbado no meio do bar e ir trabalhar normalmente na segunda-feira. Desde que chegue no horário, não deverá ter problema algum envolvendo sua conduta fora desses espaços secundários. É aí que entra o falso moralismo.
A ideia da dignidade e da postura correta, politicamente correta funcionam como amarras, de modo que o sujeito a elas subordinado seja tentado a uma contravenção, para romper o sistema e todas as normas espontâneas, de tal modo que a loucura às vezes é tanta, que o próprio conjunto de normas legais acaba sendo violado e aí chega-se ao ponto do crime. É o motorista alcoolizado, é a violência contra a mulher, entre outras atividades ilegais.
De qualquer forma, é um tema longo demais para abordar dentro desta coluna, mas que fico feliz por poder abordar com meus alunos, que certamente em algum momento ou outro já me encontraram ou irão me encontrar tomando uma cervejinha gelada em algum boteco aos arredores da universidade. O lado bom? São todos maiores de 18, podem beber comigo e dividir a conta!
• Historiador •
Formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste – Unicentro;
Professor de História e Sociologia;
Pesquisador.
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